JANELA DO TEMPO…
NOSTÁLGIA
- Tono, anda cá, faz-me um favor. Olha, vai à loja da Marquinhas 1) comprar-me arroz. Sabes, hoje não posso mesmo das minhas pobres pernas, que teimam em não andar.
O Tono, deixou o jogo da bola de rua, e lá foi, como já era habitual, em grande correria, satisfazer o pedido da Tia Proserpina, que já trás consigo o peso de 80 anos de idade, há pouco completados.
A Tia Proserpina, viúva já lá vai uma dúzia de anos, vive só, sem filhos. Simpática, conta com a solidariedade dos vizinhos que nutrem um grande afecto e carinho por ela.
Vive muito pobremente, usufrui de uma reforma de miséria, que mal dá para os medicamentos, quanto mais para a sua alimentação. Vive numa casa já muito tocada pelo tempo, bastante húmida, que não conhece obras de manutenção já há muito tempo, o que contribui para aumentar as dores insuportáveis dos ‘ossos’ das suas pernas.
A Tia Proserpina ainda se recorda dos momentos em que, no rio dos Pelames, sem o brilho desses tempos, hoje tudo à volta é uma desolação, lavava a roupa das senhoras da Vila, e com a sua voz bem afinada cantarolava as canções da época. Era contagiante: as outras lavadeiras, que ocupavam cada uma a ‘sua’ pedra no rio de cima e no de baixo, também entravam na ‘desgarrada’, cantando, e rindo a bom rir. E quem estivesse na estação do caminho-de-ferro ouvia este belo cantar, logo reconhecendo a voz da Tia Proserpina.
Casou, muito nova, como era costume das raparigas, nesses tempos difíceis. Conheceu o Manuel quando este se deslocava com regularidade para Ul, Oliveira de Azeméis com a carroça carregada de sacos de milho que os clientes lhe entregavam para a moagem em moinho alugado. A clientela era tanta que os moleiros tinham de socorrer-se desta alternativa, pois existiam em Ul inúmeros moinhos de água, hoje recuperados, em contraste, com os existentes nos Pelames, em ruína… Por lá permanecia até que a moagem estivesse completa. No percurso, cruzava em Madaíl (Ul faz fronteira a norte com Madail) onde metia conversa com a então jovem Proserpina, de quem nunca mais tirou a vista, começando assim, repentinamente, uma relação amorosa. Tempos que recorda com saudade.
Mas há sempre um mas o Manuel, já casado e com um copito a mais, transformava-se num outro homem. Ficava nervoso, completamente modificado, batia-lhe mal entrava em casa.
Com o tempo, Tia Proserpina, adivinhando o estado do marido, já se refugiava em casa de uma vizinha, a uns poucos metros dos moinhos, até que as coisas arrefecessem.
Fora estes momentos, o Manuel era um bom trabalhador, recorda com saudade. A levada do rio estava sempre um esmero, que o diga quem o conhecia, principalmente as lavadeiras que frequentavam o rio dentro da sua propriedade.
Quantas memórias lhe vêm à mente nos Moinhos, quantas noites passadas sem conhecer cama e descanso, atenta à moagem da farinha. Uma vida difícil, mais ainda com a doença do marido. A tuberculose o levou, ainda bastante novo. Não o merecia, dizia a Tia Proserpina muitas vezes, para si mesma. “Mas Deus lá sabe porquê”.
A partir daqui, a vida complicou-se. Faltavam-lhe as forças, tudo se desmoronava. Com o Manuel apesar daqueles momentos de mau génio tudo se ultrapassava. Agora… estava assim nestes pensamentos quando aparece o Tono, que logo regressa ao jogo da bola. Lá foi fazer uma sopita para enganar o estômago, pois mais nada havia.
«Quantas vidas sós, depois de uma vida de trabalho, se multiplicam por aí à nossa volta. Nem reparamos nelas de tão apressados que andamos, ou, pior ainda, tantas vezes com indiferença. Tantas que hoje só vivem de recordações e que… outras vezes, ficam a murmurar consigo mesmas: “ao menos se Deus me levasse”».
1) A Marquinhas era a dona da loja dos ‘Canecos’, na esquina dos Pelames com a rua Alexandre Herculano.
António Ferreira Valente -27.05.2009
NOSTÁLGIA
- Tono, anda cá, faz-me um favor. Olha, vai à loja da Marquinhas 1) comprar-me arroz. Sabes, hoje não posso mesmo das minhas pobres pernas, que teimam em não andar.
O Tono, deixou o jogo da bola de rua, e lá foi, como já era habitual, em grande correria, satisfazer o pedido da Tia Proserpina, que já trás consigo o peso de 80 anos de idade, há pouco completados.
A Tia Proserpina, viúva já lá vai uma dúzia de anos, vive só, sem filhos. Simpática, conta com a solidariedade dos vizinhos que nutrem um grande afecto e carinho por ela.
Vive muito pobremente, usufrui de uma reforma de miséria, que mal dá para os medicamentos, quanto mais para a sua alimentação. Vive numa casa já muito tocada pelo tempo, bastante húmida, que não conhece obras de manutenção já há muito tempo, o que contribui para aumentar as dores insuportáveis dos ‘ossos’ das suas pernas.
A Tia Proserpina ainda se recorda dos momentos em que, no rio dos Pelames, sem o brilho desses tempos, hoje tudo à volta é uma desolação, lavava a roupa das senhoras da Vila, e com a sua voz bem afinada cantarolava as canções da época. Era contagiante: as outras lavadeiras, que ocupavam cada uma a ‘sua’ pedra no rio de cima e no de baixo, também entravam na ‘desgarrada’, cantando, e rindo a bom rir. E quem estivesse na estação do caminho-de-ferro ouvia este belo cantar, logo reconhecendo a voz da Tia Proserpina.
Casou, muito nova, como era costume das raparigas, nesses tempos difíceis. Conheceu o Manuel quando este se deslocava com regularidade para Ul, Oliveira de Azeméis com a carroça carregada de sacos de milho que os clientes lhe entregavam para a moagem em moinho alugado. A clientela era tanta que os moleiros tinham de socorrer-se desta alternativa, pois existiam em Ul inúmeros moinhos de água, hoje recuperados, em contraste, com os existentes nos Pelames, em ruína… Por lá permanecia até que a moagem estivesse completa. No percurso, cruzava em Madaíl (Ul faz fronteira a norte com Madail) onde metia conversa com a então jovem Proserpina, de quem nunca mais tirou a vista, começando assim, repentinamente, uma relação amorosa. Tempos que recorda com saudade.
Mas há sempre um mas o Manuel, já casado e com um copito a mais, transformava-se num outro homem. Ficava nervoso, completamente modificado, batia-lhe mal entrava em casa.
Com o tempo, Tia Proserpina, adivinhando o estado do marido, já se refugiava em casa de uma vizinha, a uns poucos metros dos moinhos, até que as coisas arrefecessem.
Fora estes momentos, o Manuel era um bom trabalhador, recorda com saudade. A levada do rio estava sempre um esmero, que o diga quem o conhecia, principalmente as lavadeiras que frequentavam o rio dentro da sua propriedade.
Quantas memórias lhe vêm à mente nos Moinhos, quantas noites passadas sem conhecer cama e descanso, atenta à moagem da farinha. Uma vida difícil, mais ainda com a doença do marido. A tuberculose o levou, ainda bastante novo. Não o merecia, dizia a Tia Proserpina muitas vezes, para si mesma. “Mas Deus lá sabe porquê”.
A partir daqui, a vida complicou-se. Faltavam-lhe as forças, tudo se desmoronava. Com o Manuel apesar daqueles momentos de mau génio tudo se ultrapassava. Agora… estava assim nestes pensamentos quando aparece o Tono, que logo regressa ao jogo da bola. Lá foi fazer uma sopita para enganar o estômago, pois mais nada havia.
«Quantas vidas sós, depois de uma vida de trabalho, se multiplicam por aí à nossa volta. Nem reparamos nelas de tão apressados que andamos, ou, pior ainda, tantas vezes com indiferença. Tantas que hoje só vivem de recordações e que… outras vezes, ficam a murmurar consigo mesmas: “ao menos se Deus me levasse”».
1) A Marquinhas era a dona da loja dos ‘Canecos’, na esquina dos Pelames com a rua Alexandre Herculano.
António Ferreira Valente -27.05.2009
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